06/06/2013

Um filme, uma mulher. Por Paulo Peralta





Filme: Malèna. MulherMalèna Scordia
(IMDb)


Quando a Sofia Santos do excelente Girl on Film me convidou para participar no segmento Um Filme. Uma Mulher, que iria lançar, não só aceitei o convite que muito me honra como a minha mente partiu imediatamente em busca da personagem feminina e do filme que quereria abordar.
Foi rapidamente que recorri a um dos meus realizadores de eleição bem como à sua filmografia que exibe sempre uma personagem feminina central ainda que, por vezes, esta não seja a personagem principal do filme.

Giuseppe Tornatore. O realizador italiano já vencedor de inúmeros prémios não só da Academia Norte-Americana de cinema, como também da Britânica e claro da sua italiana natal, já dirigiu filmes como Cinema Paraíso, O Homem das Estrelas, A Desconhecida, A Lenda de 1900 ou o mais recente A Melhor Oferta. Todos eles com personagens femininas que, sendo ou não protagonistas, ocupam um papel essencial no decorrer do enredo. No entanto, seria com Malèna que a mulher seria filmada em toda a sua plenitude.

Malèna não é uma mulher qualquer, nem tão pouco os tempos que se viviam eram ditos “normais”. Tão pouco o é a actriz Monica Bellucci que lhe dá corpo mas, acima disso, uma alma bem mais profunda do que aquela que inicialmente se poderia esperar desta actriz, ex-modelo, que aqui se assume como um forte talento cinematográfico.

A acção transporta-nos para uma Sicilia fascista a viver os dias da ocupação alemã de Itália. Um mundo “pequeno” onde todos se conhecem, ou julgam conhecer, e onde os juízos de valor e pré-conceitos sobre as pessoas são formados única e exclusivamente com base naquilo que deles retiramos visualmente. Se alguém é aparentemente rico… é porque roubou. Se alguém é visualmente atraente… é porque possivelmente vai desviar o marido das outras e fazer dele o que quiser. Se alguém vive aparentemente bem num mundo e numa sociedade onde todos sobrevivem com dificuldades, então é porque o anda a obter de forma ilícita e imoral. Este foi o desígnio de Malèna. Ser uma mulher bonita, atraente, sedutora mas que a todos ignorou para não ser apelidada de “mais uma”, mas que numa época ou sociedade diferente a sua postura torna-la-ia perdida e ignorada pelos olhares alheios. Descaradamente adorada pelos homens e repudiada com maior veemência pelas mulheres da povoação, Malèna apenas poderia ter uma sobrevivência graças à boa vontade dos demais que nela viam ora o bode expiatório para os problemas sociais e familiares da comunidade como, por outro lado, era vista pelas homens como a forma de oberem o prazer carnal que sentiam já não poder ter das suas mulheres.
Mulher objecto para uns, objecto de repúdio para os outros.

Malèna Scordia é, no entanto, uma personagem que não se fica apenas por aí. Ela é o retrato ficcionado de uma mulher, da “mulher” italiana sobrevivente do maior conflito sentido em Itália, e na Europa, até à data. Enquanto todo o país se ressentiu das agruras da guerra, desde a destruição, à morte, à fome e à doença, foi no sul do país que todos os sacrifícios se fizeram sentir com maior impacto. Foi ao sul que as tropas alemãs queriam chegar para dominar o Mediterrâneo e, como tal, garantir uma passagem para o Norte de África, mas foi também pela sul que as tropas Aliadas garantiram a ocupação do país para a sua posterior libertação. Todo o mundo vivia conturbado, mas ali sentia-se o tremer do conflito.

Com os homens fora a combater para um despótico Mussolini, foi a mulher italiana que se viu a ocupar todos os papéis que eram, até então, repartidos. Foi ela que se assumiu como a dona-de-casa, a mãe, a mulher de marido ausente, a viúva, a recém-casada, a trabalhadora independente, a filha e, em muitos casos, a prostituta que abandonada por tudo e todos tinha apenas uma única forma de poder ganha a sua vida e, como tal, a sua sobrevivência.

Quase todos estes papéis foram desempenhados por Malèna. Foi filha de um pai que a renegou graças às conversas do povo. Mulher de um marido ausente numa guerra que não era a dele. Dona-de-casa (da sua) que tentou a todo o custo manter livrando-se dos seus vizinhos oportunistas, dos alemães ocupacionistas e só cedendo mais tarde devido à humilhação pública de que fora alvo. Viúva pela suspeita de que o seu marido jamais regressaria, e finalmente a prostituta de alemães…  aqueles que tendo dinheiro poderiam assim garantir a sua sobrevivência, mesmo que face aos olhos de um povo sedento de sangue, tudo fariam para a condenar (já ela estando condenada).

Ainda que observada por um eterno defensor silencioso, Malèna apenas sobrevive graças ao seu próprio silêncio. Por todos passa sem olhar e por todos passa sem falar, sendo que é este mesmo silêncio que aos poucos contribui para o seu próprio desaparecimento. A anulação quase total da sua identidade, individualidade e feminilidade só a si convenceram, sendo que aos olhos dos demais ela é apenas um alvo que eventualmente se irá abater, faça ela o que fizer. O seu silêncio jamais afastou os outros e jamais lhe iriam garantir a segurança que sempre esperou ter.

O silêncio a uma vida que não pediu, que não fez por ter e muito menos o silêncio a um destino a que se viu obrigada a cumprir e que teve de cumprir, Malèna é assim o símbolo de uma mulher que ainda hoje, anos decorridos, esconde um passado que sem a definir teve de cumprir e que caracterizou toda uma geração de mulheres que em nome da sua existência agiram contra a própria consciência, estabelecendo uma clara separação entre mártir e sobrevivente.

Finalmente, e depois desta reflexão, resta-me agradecer à Sofia pelo convite e felicitá-la pelo excelente trabalho que desenvolve no seu blog que é para mim uma referência.






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